pequeno objeto para guardar segredos
escrevo sobre o trabalho que criei para o livro “e: persuasões íntimas: e falar entre si: e uma liga de sólido e de frágil: e”, do grupo Impossibilidade de Esgotamento
para ler ouvindo: Paprika, Japanese Breakfast
na próxima semana será o lançamento do livro “e: persuasões íntimas: e falar entre si: e uma liga de sólido e de frágil: e”. o projeto é resultado da práticas experimentais realizadas em 2024 pelo Grupo de Estudos Impossibilidade de Esgotamento, idealizado por Kamilla Nunes, do qual faço parte. portanto, nessa publicação há um trabalho meu, que intitulei como "menko”.
durante um semestre, experimentei várias técnicas, mas criei apenas um objeto: um envelope em dobradura inspirado em cartas trocadas durante a adolescência com uma rede de amigas e primas. a ideia surgiu de um mergulho num passado distante, registrado há quase 30 anos em um diário.
apesar de ter sido uma experiência particular e terapêutica, não tinha como objetivo me colocar no centro. reler os bilhetes e cartas serviu para identificar experiências e sentimentos vivenciados por aquele grupo de mulheres em processo de maturação em um contexto dos anos 1990.
acima de tudo, me prendi aos segredos trocados em poucas palavras, nos recursos com os quais nos comunicávamos para comentar percepções, entender circunstâncias e nos expressarmos. também no medo de falar as coisas em voz alta, em expor nossas ideias e pensamentos, em nos diminuirmos diante dos meninos e a ansiedade em circular entre outros grupos. perceber nessa rede incoerências, pequenas rusgas, inveja, tristeza e incompreensões também me ajudou a aceitar a complexidade que nos faz humanas e imperfeitas.

interessante comentar que quando contava às pessoas que estava relendo meus diários, muitas delas, especialmente mulheres, perguntavam se o processo estava sendo doloroso, pois elas mesmas sentiam vergonha de si mesmas na adolescência. minha experiência foi justamente o contrário. escrevi há um tempo um pouco sobre isso, mas é preciso dizer que aprendi há me acolher há muitos anos.
assim, o reencontro com um dos momentos mais tristes da minha vida ocorrido em 1997 ajudou para eu perceber que minha memória havia me traído — felizmente. nunca me permiti ocupar o lugar de vítima (ou vilã) e observei nas minhas anotações que sempre fui assim. ao me sentir desconfortável, briguei, me levantei e fui embora para escrever eu mesma um novo caminho — difícil e solitário, mas que me permitiu chegar à mulher que sou hoje.
o regresso não me fez sofrer. produzir o objeto, no entanto, exigiu muito mais do que eu podia imaginar. no meio do processo, entendi ainda que não sou artista visual, apesar de estar no grupo e assim ser identificada. chegar ao envelope não foi difícil. foi até meio óbvio. assim que abri o diário, percebi que deveria desenvolver algo nesse sentido, mas o processo todo de apresentação, com escolha dos materiais, tamanho, cores e de como seria fotografo foi intenso e trabalhoso.
fiz várias pesquisas e tentativas até que assisti a um corte do filme “Dias Perfeitos”, de Wim Wenders, no qual o protagonista guardava pequenas sementes em uma dobradura. percebi uma conexão com o que estava criando. além de me identificar com o enredo do filme, achei bonita a forma como o envelope, chamado menko, se abre.
fiz um protótipo e levei ao grupo de estudos. ver as pessoas interessadas em abrir e tendo dificuldade em fechar a dobradura me fez perceber que o objeto era o que eu gostaria de apresentar na publicação. Kamilla fez referência aOs Bichos de Lygia Clark, o que me deixou ainda mais feliz e satisfeita com o trabalho.
olhando assim, meu menko não é uma peça tão admirável — muito distante da obra da Lygia —, ele é torto e cheio de falhas — eu jamais conseguiria fazer algo perfeito. tampouco acho que tenha sido muito criativa, mas me orgulho muito de todo o processo. na publicação, ele se abre ao espectador, como uma revelação e uma pergunta.
como objeto, o menko demanda a interação de quem abre, criando uma relação com a obra. no livro, acompanha também um pequeno texto poema que escrevi com instruções — o qual me arrependi depois de não ter feito em prosa. mas o que está feito está feito.
Sobre o livro
A publicação “e: persuasões íntimas: e falar entre si: e uma liga de sólido e de frágil: e”, que é fruto das práticas experimentais do grupo Impossibilidade de Esgotamento, idealizado por Kamilla Nunes, em 2022, será lançada na quinta-feira, 24 de abril, a partir das 19h, na Fundação Cultural BADESC, em Florianópolis. A entrada é gratuita.
Segundo Kamilla, que é artista, curadora, editora e doutora em processos artísticos contemporâneos pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, do Centro de Artes (CEART) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), a nova publicação propõe um diálogo entre os territórios da arte e da literatura.
“Estão contidos neste livro obras criadas a partir de diversas materialidades, como gravuras, carimbos, aquarelas, cianotipia, colagem, escrita, fotografia, entre outros, para tratar da relação entre sujeito-mundo a partir de uma referência primordial, ‘A teoria da bolsa de ficção’ da escritora Ursula K. Le Guin”, explica a editora, que desde 2010 organiza e publica obras que exploram a arte contemporânea, a literatura e a história
Com 192 páginas, o livro, que propõe um território híbrido entre arte e literatura, desafiando estruturas convencionais e incorporando práticas de apropriação, deslocamento e transformação textual, provocando revisões históricas e críticas sociais, e estará à venda no dia do lançamento, conta com a participação de 39 artistas.
Publicado pela Cais Editora, participam da obra: Ana da Nova, Andrea V Zanella, Bodhan, Bruna Granucci, Carol Grilo, Carol Passos, Carolina Faller Moura, Carolina Moraes, Cínthia Busato, Duda Marcelino, Eduarda Renaux, Fernanda Lago, Fernanda Nascimento Carvalho, Francine Bagnati, Gustavo Henrique Scheidt, Ilca Barcellos, Isabel Kanan, Ivan Jerônimo, Jessica Pellegrini, Julie Bagnati Garbin, Karen Rechia, Laïs Krücken, Larissa Arpana, Lu de Moraes, Luisa Sousa Lima, Luiz Gustavo Corrêa, Márcio Silva, Mariah Flores, Mariana Colin, Maristela Silveira, Meg Tomio Roussenq, Naiana Klein Rech, Nestor Jr, Ramayana Lira de Sousa, Rosi Costah, Sandra Meyer, Silvia Da Ros, Simone Bobsin e Zans.
obrigada pela leitura e espero vocês no lançamento! um beijo e até a próxima.
Amei, Carol. A ideia de 'conseguir abrir e ter dificuldade para fechar' reverbera nas nossas emoções. Ser imperfeito também. Orgulho de você! Beijo!