para todos os homens que não leem ficção
sobre fantasias, autoficção, escapismo, orixás, o tempo, Marcelo D2 e My Brilliant Friend
escapamos da dor pela fantasia. pela criação de cenários possíveis, de alternativas ao presente. desde criança, sou capaz de construir universos inteiros dentro da minha cabeça. poderia viver nesses mundos construídos de memórias e desejos e habitar neles pra sempre, criando meus próprios conflitos e saídas bem elaboradas pra eles.
a autoficção nem sempre é mais interessante que a vida real, que pode ser muito mais fantástica do que a mente é capaz de imaginar. ainda assim, é muito melhor habitar um planeta sem burocracias, contas a vencer, prazos a cumprir, banalidades a resolver e, principalmente, onde posso me aproximar de quem se afastou ou foi retirado do nosso mundo.
agora tenho me interessado por encantamentos. a capacidade de receber em um corpo alguém de outro mundo. misturar-se nessa existência, falar novas línguas e dialetos, assumir outra personalidade, ser capaz de transmitir paz e cura a todos os seres. os mistérios por trás do encantamento são tão atraentes e acolhedores quanto as ficções que se formam na minha cabeça.
nesses estudos, leituras e giras, conheci uma mitologia ancestral. na qual, espíritos nos trazem mensagens por meio de histórias. os orixás aproximam-se dos humanos em relatos onde a dor é existente, onde o erro é permitido e onde se assumem responsabilidades.
essa história transmitida pela oralidade é capaz de estimular a imaginação, por isso, tem muito sentido pra mim. nem sempre é fácil acreditar e se convencer das coisas, mas se eu sinto, confio.
quando pensei em escrever esse texto, imaginei algo sobre Zara Tempo, orixá do tempo e dos mistérios. talvez você conheça pela música Pra Curar a Dor do Mundo, composição de Marcelo D2 com Luiz Antônio Simas.
Tempo espalha a semente
E o pão que a mão amassou
Passado ampara o presente
Futuro é de quem lembrou
E sabe que tempo passa
O tempo nunca adormece
Zaratempo só abraça
Quem no tempo permanece
todos os dias ouço essa música como uma oração. peço para respeitar o tempo, todos os sentimentos que envolvem esperar. esperar as coisas passarem, os segredos se revelarem, respeitar o ciclo das coisas caminharem. por vezes, tento escapar dessa espera recorrendo a fantasias de um futuro que talvez nunca chegará. uma expectativa por uma paz interior plena e inabalável. uma doce ilusão que jamais se cumprirá.
é confortável, conhecido e um placebo irresistível. nem sempre calmante, claro. na maioria das vezes, confuso e uma distração do que verdadeiramente importa.
apesar de ter lido e pesquisado muito sobre Zara Tempo e ter pensado bastante sobre o respeito ao tempo, ontem assisti ao segundo episódio da quarta temporada de My Brilliant Friend, série da HBO inspirada na tetralogia da Elena Ferrante. essa temporada se refere ao último livro da série, História da Menina Perdida. parte do que ia escrever mudou.
(alerta de spoiler: sugiro parar aqui se ainda não viu ou leu)
Lenu, a protagonista, vive o tormento de quem descobre a verdade por trás de uma ilusão. parece um grande clichê escrito assim, mas quando ela desaba ao saber que Nino vai ter um filho com a esposa do qual supostamente havia se separado, senti uma dor aguda. por um momento, parei de respirar.
Nino é uma grande fantasia construída habilidosamente pela mente da grande escritora que é Lenu. desde a infância, ela acumula pequenas percepções para criar esse semi-deus e torná-lo o grande amor da sua vida. a partir da terceira temporada, Nino finalmente enxerga em Lenu uma possibilidade. e se surpreende como ela é encantadora.
a partir disso, eles vivem um romance complexo, estridente, cujas falhas são encobertas por promessas e muita expectativa de um futuro feliz. quem lê e assiste se decepciona mais uma vez com esse homem que, no início, era apresentado como um menino sensível inteligente.
quando conhecemos Nino, Lenu havia se identificado com ele. afinal, é um personagem tão destoante quanto ela em um ambiente de violência. concordamos, a princípio, que parece impossível ela não dedicar praticamente uma vida toda a se imaginar em sua companhia.
no capítulo que assisti ontem, a revelação de Nino causa uma profunda rachadura nessa redoma que a protagonista construiu com tanto esmero. ela enxerga: ele é falho, cruel, mentiroso, traidor e — que triste — humano. a fantasia se desmancha em uma sentença: “Eleonora está grávida de sete meses".
o que a atriz Alba Rohrwacher entrega nessa cena e a forma como ela foi filmada são impressionantes. foi como despertar de um sonho, descobrir a realidade de uma forma tão crua e, pior, vivenciar a dor da personagem.
no livro, Lenu enumera uma série de questões a partir desse episódio. por que não foi avisada por Lila? ela busca entender como ninguém, principalmente a melhor amiga, a alertou sobre algo que, no fundo, ela sabia.
em meio à dor, acontece algo inesperado na cena, mas igualmente real e verdadeiro. o único que está em casa quando Nino faz a revelação é Franco, amigo e ex-namorado de Lenu. ela busca apoio e, desesperada, pede que Franco mande Nino embora, mas o que acontece é desesperador. Franco tenta confortá-la dizendo que, apesar de tudo, Nino se esforçou para contar a verdade. portanto, cabia a ela considerar tamanho feito.
compreendi da seguinte forma o que ocorreu: o pacto silencioso entre os dois homens revela uma mensagem nas entrelinhas. aos homens é permitido desconstruir qualquer sonho de uma mulher. além disso, se é exposta a verdade pela boca deles, cabe o perdão, pois a mentira é conveniente, desde que você seja homem.
essa percepção não é um protesto feminista (embora eu seja. e proteste), mas tentei descrever o que me tocou na cena. como mulher hétero cis, Lenu resgatou memórias de momentos em que descobri verdades incompreensíveis em relacionamentos com quem eu confiava absolutamente. porém, assim como ela, por desmerecer sinais e apostar na fantasia, me senti encorajada ao perdão.
isso tudo me recordou que homens héteros leem menos romances de ficção. portanto, tendem a construir um repertório baseado em suas próprias vivências e a ignorar existências diversas. talvez seja por isso que repetem insistentemente comportamentos destrutivos, subestimam o desconhecido e, principalmente, desdenham a capacidade das mulheres em imaginar diferentes cenários possíveis.
quando nos jogam na cara verdades cruéis, nos culpam por expectativas e por sonhos que criamos ao lado deles. uma dinâmica completamente favorável a eles. embora deem insumos, repitam em argumentos e ações e ajudem a construir cenários, nos responsabilizam por inventar futuros que jamais se concretizarão. parece amargor, mas esse texto é muito mais que isso.
apesar de a imaginação ser perigosa, compreendo como uma grande vantagem. percebo que, ao escolher o que criar e ler sobre histórias alheias, me sinto uma mulher mais completa e próxima do que faz a minha essência. acredito que escrevo para defender esse direito e me livrar dessa culpa.
verdades cruéis são dolorosas e difíceis, mas o tempo passa e a cada verdade já não sou mais a mesma. está tudo certo com isso. me ajuda conhecer sempre algo novo nas leituras e estudos — seja ficção ou não. como uma mulher falha e — neste momento, triste — escolho por vezes o escapismo e o sonho do encantamento. por tudo que inventei, me responsabilizo e sei que não foi sozinha.
essa news é gratuita, mas se você quiser contribuir com o Posfácio, clica aqui. ajude a gente a fazer jornalismo independente em Santa Catarina.
Acompanhe o Posfácio:
Ouça o episódio mais recente:
beijos e até a próxima,
Carol
Carol, adorei como você costurou esta edição ❤️ Ontem assisti ao terceiro episódio e continuo com o mesmo mal estar no peito. Tenho me lembrado dos livros do Domenico Starnone. Já leu algum? Beijos!
Carol, minha mulher me apresentou a Alba Rohrwacher. É um universo muito delicado e tudo é lindo demais. Assistimos tudo dela que encontramos. Estou aqui me machucando um pouco com os tombos que levo dessa tecnologia toda mas estou tentando.