o que você precisa saber sobre a minha vó
uma crônica sobre histórias de pessoas comuns e a lembrança para encarar o luto
quando comecei no jornalismo, uma das minhas principais tarefas na redação era escrever obituários. todos os dias a central funerária da cidade nos enviava a lista de pessoas que faleceram no dia anterior e o contato de um parente ou responsável. havia uma pequena coluna com espaço para dois obituários no jornal impresso.
com o tempo, desenvolvi sensibilidade para ligar para os números da lista e elaborei uma abordagem para que a pessoa que atendesse compreendesse que eu não queria vender nada. era uma homenagem gratuita.
nem sempre a receptividade era boa, por isso, escrever obituário não se torna uma atividade corriqueira com o tempo. todos os dias, o sentimento mudava, a história era outra e isso exigia paciência e respeito da minha parte. com o luto, muitas vezes, vem a raiva. uma revolta pela perda. em outras, o contexto da morte era complicado, envolvendo crimes ou situações que a família não queria expor no jornal. mesmo assim, era comum as pessoas desabafarem para logo em seguida me pedirem para não publicar o que haviam me contado.
era pra ser um trabalho simples e rápido, mas eu sempre levava um bom tempo ouvindo as pessoas e prestando condolências à família. o obituário faz parte de um ritual do luto, além de uma homenagem a quem se vai, é um registro daquela existência. sempre tive a consciência de que muitas pessoas só têm o nome impresso em um jornal quando morrem. meu tempo era o mínimo que eu poderia oferecer.
a maior dificuldade dessa tarefa não era apenas lidar com a tristeza, saber o que dizer e o que não dizer. tinha o caso de a pessoa “entrevistada” conhecer pouco o falecido. em geral, o contato da funerária era o do responsável por resolver a burocracia que envolve todo falecimento. nem sempre era alguém próximo ou íntimo da pessoa homenageada.
eu tinha uma lista de informações essenciais que precisava extrair: nome, idade, circunstâncias da morte, número de filhos, nome do cônjuge e também uma pequena história sobre a pessoa. o que ela gostava mais de fazer? onde havia nascido? com o que trabalhava? enfim, precisava resumir em ao menos três parágrafos uma vida inteira. parece pouco, mas a maioria dos contatos sabia detalhes básicos sobre a pessoa que perdeu. muitos confessavam: a gente quase não conversava sobre nada a não ser as coisas do dia a dia.
essa experiência é uma das mais importantes da minha carreira como jornalista e da minha vida pessoal. ninguém sabia na redação, mas eu tinha minha própria história de luto. perdi meu único irmão aos 15 anos, vítima de um aneurisma cerebral. um dia ele desmaiou e nunca mais acordou.
toda a movimentação daquele dia, em 1997, mudou minha percepção sobre a vida. primeiro, entendi que jovens também partiam pra sempre. meu irmão tinha apenas 16 anos. depois, que o sofrimento é algo incurável e incontrolável.
ver meus pais e parentes próximos vivendo aquela dor me machucou pra sempre. eu mesma não consegui entender tudo. senti muita raiva porque não podia salvar as pessoas ao meu redor, tampouco fazer nada a respeito da morte. é uma percepção complexa. ao mesmo tempo em que se percebe que perder uma pessoa é extremamente doloroso, compreendi que somos insignificantes e pequenos diante da brevidade da vida.
só fui falar sobre isso depois dos 40 anos porque sabia que vivenciaria em breve mais uma perda significativa. minha vó, que ajudou a me criar, estava prestes a nos deixar. em 2013, meu pai faleceu e o quanto ele sofreu me tornou uma pessoa cética e de pouca fé. não queria repetir esse mesmo sentimento de vazio e dor.
principalmente porque minha vó sempre foi uma mulher de muita fé. uma senhora de 91 anos com a ingenuidade e a pureza que me emocionavam. acreditava nas pessoas, com o dom de ver o melhor nelas. tinha os ouvidos atentos às dores dos outros, aconselhava e sofria, muitas vezes, por coisas que sequer havia vivenciado tamanha a empatia. ela tinha um humor único e até mesmo muito debilitada queria ser independente e autônoma.
sai de casa aos 17 anos para cursar jornalismo e nunca mais morei mais de um ano na minha cidade natal. porém, ir a Mafra era sempre ir na casa da minha vó, que é onde minha mãe vive até hoje.
me preparei desde a pandemia para uma possível perda da minha vó. isso me deixou bastante angustiada e ansiosa. quando ela ficou doente, comecei a lidar com a possibilidade de nunca mais encontrá-la até o dia chegou. foi há pouco mais de uma semana, no dia 23 de agosto.
a passagem dela foi bonita. senti minha família muito unida pelo amor e nos acolhemos respeitando os sentimentos uns dos outros. isso me confortou e ainda me conforta.
mas apesar da homenagem que prestamos, senti falta de não poder escrever o obituário dela. não sou boa de falar, prefiro escrever. portanto, compartilho aqui algumas das lembranças que tenho dela e que acho que todo mundo deveria saber.
(sou uma crítica de quem homenageia outra pessoa falando de si, mas acredito que faz parte do luto tornar as lembranças um alívio, por isso, peço licença a quem me lê por cometer esse deslize).
minha vó nasceu em Mafra, em 21 de maio de 1933. foi batizada Dinacy, era a filha mais velha de Eva e José. casou-se com Antônio com quem teve seis filhos, dois homens e quatro mulheres, uma delas minha mãe, 10 netos e três bisnetos.
ela cursou apenas o fundamental, mas lembrava-se das aulas de geografia e tinha muito interesse por atualidades. se divertia assistindo a programas de auditório na TV Aparecida e fazia minha mãe pular as partes tristes nos poucos filmes que assitiu depois de idosa.
vivia com o rádio ligado e tinha uma percepção apurada de assuntos como política e justiça social. também lembrava de algumas palavras em francês que aprendeu na escola.
acolheu muitas pessoas em sua casa ao longo da vida, inclusive meu pai. se sensibilizava com as histórias das pessoas e não se importava em dividir o pouco que tinha.
quando eu era criança, criava galinhas que eu e meu irmão adorávamos soltar no quintal pra caçar uma a uma e prender no galinheiro. ela cuidava de nós dois enquanto meus pais trabalhavam. nos acordava com mamadeira ou uma caneca de café com pão que apelidamos de papazinho. eu amava o papazinho e só ela sabia preparar.
fazia o melhor cuque de banana com farofa e a quirera mais gostosa de todos os tempos (na minha opinião). também cozinhava aluske e pirogues, mas era muito reverenciada pelos pães.
era costureira e sempre pedia pra eu procurar as agulhas que caiam no chão, pois ela não enxergava bem. uma vez me ajudou a fazer um fantoche de um cientista para uma apresentação na escola. costuramos cabelos e desenhei um óculos nele. ficou um pouco cabeçudo, mas isso divertiu demais as crianças da minha turma.
ela amava cantar na igreja. por muitos anos deu aulas de canto, inclusive tendo o talento descoberto ainda criança, aos 9 anos. aos 17 anos ingressou em um coral, depois começou a ensinar outras pessoas. ela tinha um gravador de fitas que ganhou do meu avô no qual registrava os ensaios para ouvir em casa e corrigir depois.
viajou para muitos lugares do Brasil pra cantar em encontros de grupos de canto e apresentações. com meu avô e minha tia Estela, conheceu o Rio de Janeiro (acredito que na década de 1970), mas ficou com medo de subir no bondinho.
quando se aposentou, gostava de andar de ônibus de graça e ir até o ponto final só pra saber onde terminava. apesar disso, não gostava de passar muito tempo longe de casa. morou na mesma rua desde que nasceu.
meu cachorro Gael foi dela por um bom tempo, embora ela não assumisse ser a tutora dele. ela o acostumou a comer apenas quando ela estivesse olhando. mesmo cego e surdo, ele a reconhecia pelo cheiro e ela chorou quando ele morreu, mas não queria que as outras pessoas soubessem para não preocupá-las.
tinha pouco estudo e era bastante simples, mas era uma pessoa extremamente curiosa e interessada pelas pessoas. era comum dar conselhos e ter empatia. reconhecia que as pessoas têm modos diferentes de ver a vida.
todas as noites antes de dormir revisava o dia e pedia perdão por erros e discussões que haviam acontecido. rezava por muitas pessoas que sequer conheceu pessoalmente (alguns dos meus amigos, por exemplo) e ligava o rádio para adormecer.
partiu numa noite de inverno, em uma sexta-feira, cercada pelo amor das filhas e após ouvir elas e a minha prima Ana Paula rezarem o terço. foi tranquila e em paz.
minha vó não era uma pessoa perfeita. era um ser humano, com algumas limitações, mas sem dúvida uma das pessoas que mais me ensinou sobre ouvir, respeitar e acolher.
pouco antes de falecer, nos sentamos juntas sob o sol e ficamos quase uma hora observando as formigas e falando sobre isso. era o que mais gostava nela e o que mais vou sentir falta: suas observações sobre coisas cotidianas, como a sensibilidade de se admirar com o trajeto preciso das formigas.
os obituários me ensinaram que cada pessoa, mesmo as mais singelas, têm consigo algo de muito especial. uma luz que a gente carrega e que sobrevive nas nossas histórias. acredito que só se parte de vez quando não há mais quem se lembre.
antes de ir, gostaria de fazer algumas recomendações:
o episódio do Posfácio sobre o livro As Pequenas Chances, com Natalia Timerman:
o episódio com o repórter Roberto Kaz, na rádio Novelo, que me lembrou dos obituários e me motivou a escrever esse texto:
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beijos e até a próxima
Meus sentimentos! Tenho muita dificuldade de lidar com o luto, prefiro não pensar, não significa esquecer, mas não pensar e manter a imagem viva e saudável de quem se foi, podem chamar de covardia, mas cada tem sua maneira de lidar.
Obrigada por compartilhar conosco seu momento.
Muito obrigada por escrever, Carol! Chorei muito, me identifiquei em várias partes, foi como uma sessão de terapia! Adorei a parte da sua vó que ela pegava o ônibus só pra ir no fim da linha (muito a minha cara!). Um abraço apertado <3